sexta-feira, 5 de dezembro de 2014

Estudos sobre a Gagueira



O segredo que se esconde na matéria branca
Exames modernos de neuroimagem estão permitindo decifrar um dos mais antigos mistérios da humanidade: a gagueira.
Por Kate Watkins *


Nos últimos anos, com o aperfeiçoamento dos métodos de neuroimagemamento, cada vez mais estudos científicos começaram a descobrir diferenças físicas na organização do cérebro de pessoas que gaguejam. Até pouco tempo atrás, a grande dúvida era saber se essas diferenças eram resultado do convívio com a gagueira ou se elas já estavam presentes desde a infância. Dois estudos recentes ofereceram respostas a esta dúvida. A pesquisadora Kate Watkins, autora do texto abaixo, é a líder de um desses estudos.

No começo de 2008, dois grupos de pesquisa sobre gagueira publicaram estudos de neuroimagem em jovens adultos, adolescentes e crianças que gaguejam. Esses estudos revelaram anormalidades funcionais e estruturais no cérebro dessas pessoas. O objetivo deles era fornecer um melhor entendimento das causas da gagueira e ajudar a explicar por que algumas crianças recuperam-se da gagueira, enquanto outras continuam a gaguejar. Considerando o resultado dos dois estudos em conjunto, estamos começando a responder estas perguntas.
Em nosso artigo, publicado na revista Brain, descrevemos diferenças na organização física das conexões entre algumas áreas do cérebro em um grupo de adolescentes e pessoas jovens que gaguejam (com idade variando de 14 a 27 anos). Essas diferenças explicaram por que este grupo de pessoas exibia uma atividade reduzida em algumas regiões do córtex cerebral durante a produção de fala.
Outro grupo de pesquisadores (Chang et al.) publicou descobertas muito similares na revista NeuroImage. Estudando crianças na faixa etária de 9 a 12 anos, eles descobriram que, no grupo com gagueira persistente, as conexões de matéria branca estavam rompidas na mesma região identificada em nosso estudo. Já no grupo constituído por crianças que tinham se recuperado da gagueira, a matéria branca estava íntegra. Eles também encontraram mudanças no volume da matéria cinzenta cortical, tanto em crianças com gagueira persistente quanto em crianças que tinham se recuperado da gagueira, e apontaram diferenças em relação ao cérebro de adultos que gaguejam.

CONEXÕES PARTIDAS
Esses estudos usaram aparelhos modernos de ressonância magnética, que fornecem imagens mais detalhadas da estrutura do cérebro com base no movimento dos átomos de hidrogênio das moléculas de água. Tanto em nosso estudo quanto no de Chang, utilizou-se um novo tipo de ressonância, conhecido como imageamento por tensor de difusão (DTI ressonance), para investigar a organização das conexões de matéria branca no cérebro. A matéria branca é responsável pela conexão entre as diversas áreas do sistema nervoso central. Ela é chamada de branca porque é constituída principalmente por um tecido gorduroso conhecido como mielina. Este revestimento gorduroso fornece isolamento para as fibras que conectam as diferentes regiões do cérebro e também aumenta a velocidade de transmissão dos sinais elétricos entre essas regiões. Em razão de o tecido ser gorduroso, as moléculas de água não têm liberdade total de movimento na matéria branca. A restrição para a mobilidade das moléculas ocorre principalmente na direção perpendicular ao feixe de fibras, e menos na direção longitudinal (ao longo do comprimento do feixe). Assim, ao medir os diminutos movimentos das moléculas de água, podemos obter imagens que mostram como as fibras estão orientadas.
Ambos os estudos descobriram que os feixes de fibras normalmente bem alinhados que conectam as áreas do cérebro envolvidas na produção de fala estavam rompidos em pessoas jovens que gaguejam. Esta ruptura provavelmente reduz a eficiência da comunicação entre as áreas envolvidas no processamento da fala.

MEDINDO A ATIVIDADE
A atividade no cérebro ocorre junto aos corpos celulares dos neurônios, localizados na matéria cinzenta. Na superfície do cérebro, a matéria cinzenta forma uma estreita camada de cerca de meio centímetro de espessura chamada córtex. Mais profundamente no cérebro, também encontramos matéria cinzenta em regiões chamadas “núcleos”, como nos núcleos da base. Em nosso estudo, além de um exame de ressonância para avaliar a estrutura do cérebro (DTI ressonance), usamos também outro tipo de ressonância, a FMRI (ressonância magnética funcional), para investigar a atividade no cérebro enquanto as pessoas produziam fala. Este tipo de exame de imagem detecta mudanças na quantidade de oxigênio transportado no sangue para o cérebro. Quando uma área do cérebro está ativa, ela precisa de mais oxigênio e mais fluxo sanguíneo. A ressonância magnética funcional mostra como esses padrões de atividade cerebral mudam enquanto a pessoa está falando.
Nosso estudo descobriu que, durante a produção de fala, as pessoas que gaguejam mostraram atividade aumentada em áreas do cérebro que não são tipicamente usadas pelo grupo-controle formado por pessoas fluentes. Algumas dessas regiões estavam no hemisfério direito, e outros estudos sugerem que esta atividade reflete um processo de compensação da gagueira. Também encontramos atividade aumentada em pessoas que gaguejam numa região do mesencéfalo, na altura da substância negra. Os núcleos de massa cinzenta nesta região profunda são parte dos núcleos da base, um conjunto de estruturas envolvidas no controle e na iniciação do movimento. A atividade extra nesta região em pessoas que gaguejam é consistente com as sugestões de estudos anteriores de que a gagueira se deve a uma função anormal dos núcleos da base ou a quantidades anormais de dopamina.
Outra descoberta interessante em nosso estudo foi que pessoas que gaguejam apresentam uma atividade reduzida em uma parte importante do sistema normal de produção de fala. Esta região – o córtex pré-motor ventral – fica imediatamente acima da área em que fibras de matéria branca estão rompidas, conforme revelado pelo estudo de difusão. É provável que a atividade na região esteja reduzida devido a um rompimento da conectividade normal e da comunicação eficiente com outras regiões do cérebro que são importantes para a produção de fala fluente.

MATÉRIA CINZENTA
Chang e seus parceiros de pesquisa também encontraram diferenças no volume da matéria cinzenta em partes do córtex envolvidas na produção e percepção da fala em crianças que gaguejam. Eles encontraram menos matéria cinzenta perto do córtex pré-motor ventral, onde havíamos detectado uma atividade reduzida. Além disso, também encontraram menos matéria cinzenta em regiões que são normalmente ativadas quando se escuta a fala (os lobos temporais). Essas diferenças em volume de matéria cinzenta estavam presentes até mesmo em crianças que tinham se recuperado da gagueira. [N.T.: ou seja, ao contrário das diferenças na matéria branca, que são diacríticas para a gagueira persistente, as diferenças no volume de matéria cinzenta não são um bom prognosticador para a persistência ou remissão da gagueira em crianças].  
Ao contrário dos estudos feitos em adultos que gaguejam, nenhum aumento na matéria cinzenta foi encontrado no hemisfério direito das crianças. Isso sugere que, em adultos que gaguejam, algumas
das diferenças verificadas podem ser conseqüência do longo convívio com a gagueira. 
É importante entender mais sobre as causas das diferenças na estrutura e função cerebral associadas à gagueira. Algumas dessas diferenças podem refletir estratégias compensatórias que fazem uso de uma outra função para controlar a fala, ou que usam regiões do cérebro fora do sistema desconectado pelos feixes rompidos de matéria branca, e que não são normalmente usadas no cérebro de pessoas fluentes. Esta idéia é apoiada pelas descobertas sobre o volume da matéria cinzenta, no estudo de Chang. Por outro lado, algumas diferenças poderiam ser de fato a causa fundamental da gagueira e podem estar relacionadas a variações genéticas ou incidentes ao longo do desenvolvimento.
Pesquisas adicionais, particularmente estudos longitudinais, começando nos primeiros anos de vida, podem ajudar a lançar luz sobre essas questões.




Referências:
􀂄- Chang, SE et al (2008). Brain anatomy differences in childhood stuttering, NeuroImage 39(3):1333-44.
- 􀂄Watkins, KE et al (2008). Structural and functional abnormalities of the motor system in developmental stuttering. Brain 131(Pt 1):50-9.
 Sobre núcleos da base e dopamina, veja p.ex. http://www.gagueira.org.br/nucleosdabase.pdf

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